sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

ASTRID

© Cláudia Costa

Hoje, dia nove de dezembro de dois mil e dez, lembro-me de uma doente que acompanhei há vários anos, quando a minha carreira parecia ainda não existir. Era uma mulher jovem, vinte e três ou vinte e quatro anos. O seu nome era Astrid e acreditava que fora concebido um filho no seu ventre sem que nenhum homem lhe tivesse conhecido a intimidade. No entanto, o semeador da vida existira. Existira o autor do milagre, ainda que a sua identidade nunca tivesse sido revelada. Agora, neste preciso momento em que a chuva cai de encontro à janela, forte, sem que eu a consiga ouvir, recordo. Enquanto lá em baixo na rua há guarda-chuvas a torcerem-se no vento. Recordo-a, a ela e ao seu nome magnífico.

Astrid, Astrid, Astrid.

Os nossos encontros aconteciam quase sempre no meu consultório durante a manhã. Porém, no fim dum outono, combinámos um encontro numa esplanada na Praia Grande, já a meio da tarde. Ela costumava passar alguns dias por ano numa casa no meio dum pinhal, que ficava ali perto, propriedade de uma comunidade religiosa com que ela tinha muita afinidade.

Lembro-me bem desse dia. O ar fino, limpo.

Astrid já estava à minha espera no café, embora eu tivesse chegado alguns minutos antes da hora combinada. Distinguindo-a, separando-a das cadeiras e das mesas, recortando-a sobre o fundo do mar, surgia como uma figura frágil, uma estátua de marfinite com as mãos sobre a barriga redonda, tão redonda que parecia ter engolido um pequeno globo. Tinha um boné na cabeça que lhe esganava os cabelos juntos às orelhas e usava, sobre o vestido branco de lã, um casaco de fato-de-treino azul que em nada combinava com o resto do conjunto. Era como se procurasse esconder-se do mundo. Olhava o mar. Ao ver-me, sorriu.
Conversámos um bocado sobre assuntos actuais e outras coisas dos seus dias, como o livro que andava a ler, e só depois passámos ao tema da consulta. Ao ser-lhe perguntado do que era feita a sua memória, Astrid disse que precisaria de evocar o sonho que tivera na noite anterior.

Primeiro, ele veio encontrar-se comigo ao meu prédio e depois fomos andando para fora da cidade até chegarmos a um extenso campo. Era incrível a quantidade de caminho que fazíamos em tão pouco tempo. Ali, havia jardins de diferentes qualidades de árvores. O primeiro jardim que atravessámos era composto de oliveiras. Imediatamente, no sonho, tive a sensação de que havia sido naquele mesmo campo que Cristo sofrera toda a angústia ante os que o abandonavam à solidão da morte. Eu passava pelas árvores e pensava, Foi aqui que Pedro prometeu que jamais o negaria. Foi aqui que, mais tarde, se deixou adormecer. Foi aqui que negou Cristo depois de o galo cantar três vezes. Foi talvez aqui, nesta mesma árvore, que Cristo chorou com medo e dor e tristeza funda no coração. Depois continuámos a andar, só que eu não conseguia deixar de pensar em Cristo e em todo o seu sofrimento. Falei-lhe disso, e ele respondeu-me que o que estava feito, feito estava, e que Cristo morrera, de facto, mas que ressuscitara três dias depois, fazendo rodar a pedra do túmulo para iluminar a terra inteira. Disse que deveríamos continuar a andar. Disse que, mais tarde, se fosse necessário, já que eu me preocupava tanto com a dor de Cristo, não se importava de voltar atrás no tempo e andar pela estrada de Emaús comigo à procura do messias ressuscitado. Já viu, doutor? Era um homem que conhecia muito bem Cristo, embora nunca antes tivéssemos falado sobre o assunto. Já viu a minha sorte? Quantas mulheres se podem gabar de encontrarem um homem que conheça as suas crenças e as acompanhe na sua cegueira de apóstolas? Mas isso agora não importa. Continuámos a caminhar e chegámos a um jardim de amoreiras, onde parámos à sombra duma árvore. Antes de prosseguirmos conversa, começámos a comer os frutos daquelas árvores. Não me lembro de os colhermos, é certo, mas eles surgiam dentro da palma das nossas mãos como se a linha-da-vida se rasgasse e dela brotassem. Depois, ele perguntou-me pelo meu livro. Eu já o tinha acabado e já lhe tinha confessado isso, noutra ocasião. Até lhe revelara o título. Mar Vermelho. Era assim que se chamava o meu livro. Embora surja no sonho, o livro era uma coisa real. E creio que ainda seja, porque ainda não o terminei. Respondi-lhe que não conseguia falar das palavras que eu própria escrevera. Tinha vindo tudo do deserto estéril e cheio de vida do meu coração. Disse-lhe que, quando tentava falar sobre a história que escrevera, só encontrava areia na minha boca, e sentia-me a sufocar. Ele voltou a pedir-me que o deixasse ler. Falava com uma ternura mansa, de cordeiro apascentado. Eu disse que sim, que iria deixar que isso acontecesse, só que mais tarde, mais à frente no tempo. Depois disto, percebi que não estávamos sozinhos. A minha rival sentava-se do outro lado. Alguma vez lhe falei da minha rival, doutor? É uma mulher mais velha do que eu, que também o ama. Nós não nos conhecíamos, mas eu sabia que ela existia. Sabe? Nunca antes a tinha referido, a não ser agora aqui consigo. Ela mantinha-se calada e eu não fazia ideia porque é que nos acompanhava. Não existia despeito no seu olhar. Dalguma maneira, eu até tinha a certeza de que ela me admirava e que, se eu própria não fosse também a sua rival, me confessaria isso. No entanto, a partir do momento em que percebi a sua presença, não consegui mais ignorar que ela poder-se-ia mostrar doce e tolerante apenas para me apanhar em falso, esperando que eu misturasse alguma ideia, que errasse duas palavras, que cometesse algum erro de raciocínio, para poder arrastar-me até ao fundo da terra. Porém, ele interrompeu o nosso recontro silencioso, e disse-me que queria ler o meu livro para poder mostrá-lo às pessoas mais bonitas. Ele disse-me, Deixa-me lê-lo. E depois acrescentou que haveria de mostrá-lo à mulher de Pablo Neruda, se ela ainda vivesse. Imagina o que é alguém que o doutor ama profundamente, alguém que está certo ter sido talhado para si, alguém que reunirá todas as peças confusas do seu puzzle, dizer-lhe uma coisa destas? Já viu a beleza que ele arranca de mim? Caramba, doutor. Eu sei que fui eu que sonhei e que todas as coisas que foram ditas no sonho tiveram origem na minha imaginação, mas não acha que é a imaginação é estimulada pelo exterior? Eu sempre acreditei que sim, sempre tive essa certeza, e sei que é por isso que este sonho foi tão bonito, sei que era ele que, sem saber, colocava toda esta beleza no fundo do meu cérebro. Um coração que ama tem uma imaginação prodigiosa, não concorda?

Neste momento da narração do seu sonho, Astrid começou a rir. Ficou assim durante alguns segundos, e depois a sua boca voltou a fechar-se, cheia de ternura e de comoção, como se quisesse ser beijada.

E a verdade, doutor, é que agora todo o meu passado não interessa mais do que esse sonho. Nele está toda a minha memória. Todo o meu entendimento se resume à perplexidade de o recordar. Sabe, a minha rival depois desapareceu. Assim como a tinha notado, esqueci-a. Ele e eu encostámo-nos um ao outro. Ficámos assim durante um bom tempo. Não me lembro nem de frio, nem de calor. Pelo menos, foi essa a sensação que tive no dia seguinte, quando me recordava de tudo. Mas antes de terminar de falar sobre o meu sonho, devo contar o que ele me disse quando nos levantámos. Primeiro, aproximou-se muito de mim, agarrou-me e beijou os olhos fechados. Disse que eu sabia a tinta e a sangue e a papel. Depois, voltou-se, aproximou-se da árvore e tentou abraçá-la. Não tenho a mais pequena ideia do que é que ele queria dizer com isto. O que será, doutor? O que será? E então foi na manhã seguinte, quando acordei, que senti que qualquer coisa se passava na minha barriga. Parecia que tinha engolido uma árvore pelas raízes e que elas continuavam a crescer dentro de mim, mesmo que eu não tivesse os minerais da terra, mesmo que eu não fosse maternal e nutritiva como só a terra sabe ser. E assim apresento-lhe a verdade que ninguém aceita. Ele fez milagres em mim. Pôs-me a caminho do abrigo que eu nunca desejara encontrar, deu-me uma bússola e engravidou-me com o seu olhar terno, com a gargalhada dos olhos e os abraços de calor que me dava. Foi quanto bastou. E sabe que mais? Só sei que o amo com uma força tremenda, ainda que nunca mais o possa ver. Ainda que o meu sonho tenha sido a última visita que ele me fez. Acredito que o encontrarei um dia, talvez pelo caminho de Emaús. Talvez no céu. Ou talvez no rosto do nosso filho, depois de nascer, quando o seu corpo já tiver crescido. Talvez nessa altura os seus olhos, o movimento dos braços e o ritmo das pernas dêem nova forma à existência do pai.

Conversámos um pouco mais, sem um assunto muito concreto. Eu raramente a interrompi. Sorria-lhe apenas, deliciado com as boas histórias que a sua loucura tinha para me contar.
Quando me levantei para ir embora, despedi-me de Astrid com dois beijos, um gesto que eu não tinha com nenhum outro doente. Ela ainda lá ficou. Entretanto, começara a chegar um grupo de turistas à esplanada, alemães talvez, adivinhando pela frescura das roupas. Caiu também uma fina camada de nevoeiro, que toldava a vista. Ao chegar ao pé do meu carro, voltei-me de novo para olhá-la uma última vez. Ali ficava aquela que efabulara o romance e deixara operar dentro si o grande milagre da vida. Aquela que hoje recordo. Agora mesmo, depois de o médico me ter dito que a minha mulher está fora de perigo mas que o meu filho morreu. Agora evoco Astrid, da mesma forma que ela evocou o seu sonho para me falar do seu mistério. Agora mesmo. Evoco-a ainda que não me sirva para nada. Evoco. Ainda que a barriga da minha mulher tenha cedido à idade e à certeza de nunca mais gerarmos um filho. De sermos ambos rebento seco em terra árida. Terra sobre terra.

Vem, Astrid, vem.

Sim, recordo. Aquela mulher ainda por conspurcar. Aquela menina que olhava o mar, no meio de estranhos, e dizia palavras no silêncio na direcção da água, esperando que atravessassem o oceano e voltassem, para de novo serem sussurradas ao seu ouvido. Aquela a quem eu diagnostiquei uma doença, cujos sintomas eram uma barriga milagrosa, crescida de amor e de utopia. Relembro Astrid, aquela que, tendo sido derrotada pela morte, se levantou da lama, pegou na caneta da loucura e recomeçou a escrever o livro do Mundo, quando a sua narrativa parecia estar já concluída e falhada.


FIM









Quando mexes no baú. Quando vais ao passado. Quando lembras.

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