quarta-feira, 29 de abril de 2009

songs under my skin #1


China. All the way to New York. I can feel the distance getting close. You're right next to me. But I need an airplane. I can feel the distance as you breathe. Sometimes I think you want me to touch you. How can I when you build the great wall around you. In your eyes I saw the future together. You just look away in the distance. China decorates our table, funny how the cracks don't seem to show. Pour the wine, dear. You say we'll take a holiday but we never can agree on where to go. Sometimes I think you want me to touch you. How can I when you build the great wall around you? In your eyes I saw the future together but you just look away in the distance. China all the way to New York. Maybe you got lost in Mexico. You're right next to me: I think that you can hear me. Funny how the distance learns to grow. Sometimes I think you want me to touch you but how can I when you build the great wall around you? In your eyes I saw the future together but you just look away in the distance.


I can feel the distance.


I can feel the distance.


I can feel the distance getting close.



Tori Amos.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

time.

Escuta, partiste há muito tempo e parece que foi ontem. E no entanto, eu ia fazer quinze anos e daqui a uns meses já faço vinte e cinco. Sabes, antes de tu partires, as Torres Gémeas ainda não tinham caído. No dia em que partiste, a guerra do Kosovo ainda não tinha acabado e o Bush ainda não era presidente dos Estados Unidos. Eu ainda não tinha ido a Moçambique.

O mundo era diferente.

Mas descansa. Eu não te deixo ficar parado no tempo. Nem guardo rancor ao tempo. Nem à dor. Não é que eu não compreenda a dor: tenho-lhe o maior respeito; ensinou-me muito. Mas o tempo e a dor são duros como uma rocha – partir aquela pedra toda pode dar cabo de nós. Saber partir aquela pedra nos sítios certos é tão difícil, requer tanta dedicação, tanta bondade.

Terei eu esculpido a minha pedra da maneira que tu desejavas?

Sabes, alguns anos depois de tu partires, o avô também partiu e endureceu o meu trabalho. A pedra foi-se tornando cada vez mais difícil de esculpir. Eu ia partindo, partindo, partindo, e quando me apercebia de que o que estava a fazer podia ser irremediável e não sobrar porção que se aproveitasse, eu tinha que me sentar e pensar muito bem onde ia apontar dessa vez a picareta.

O avô era o homem que eu mais amava depois de ti.

Hoje, sentei-me num banco do metro à espera do comboio, mas quando ele chegou eu não entrei. Nem nesse, nem no seguinte, nem no outro, nem sequer no comboio depois desse. Fique ali sentado, enquanto as pessoas entravam e saíam. Podiam ter passado vinte comboios diferentes sem que eu me tivesse apercebido. Pensei em ti e noutras coisas também. A minha memória está sempre a activar-se com pequenas coisas. Por exemplo, enquanto estava sentado, senti um baque de calor que me fez pensar numa viagem que eu fiz há dois anos em busca do amor e lembrei-me do exacto perfume que eu usava nessa altura: o calor e o cheiro do perfume fizeram-me, por alguns segundo, atravessar uma pequena rua em direcção ao mar, como na viagem: até o ar insular abafado do fim da tarde ocupou a estação.

Talvez não te tenha dito ainda que, há poucos anos, contei uma coisa à mãe que ela não percebeu muito bem ao início. Esse foi outro momento de dor. Mas a mãe é tão bonita e tem cuidado tão bem de nós. Ela é como uma força maior que o braço que a produz, ou um vitral com a luz da tarde. (Ela é como uma fotografia de Deus.) Depois ela acabou por acertar tudo no coração, no amor – que é onde se alinha o que é importante. Nunca mais existiu vergonha. E depois veio a felicidade, apesar de toda a dor, de todos os erros. Como consequência, vieram também a liberdade e a coragem. Descobri que as duas caminham juntas.

Juro-te: nunca tentei esculpir tão bem a pedra como desde o dia em que contei à mãe. Às vezes estou mesmo cansado, mas é arrepiante ver o teu rosto surgir por entre a brutalidade da pedra: ver o rosto do avô: ver a forma do que amei, do que fui a amar, do que sou a amar.

No outro dia, encontrei uma fotografia tua por acaso. Estava dentro de um dos meus livros. O “Centauro”, do John Updike. Eu era pequeno e estava ao teu colo. Tu ainda tinhas bigode e eras muito jovem. Nesse dia, tinhas-me comprado um relógio no jardim zoológico. Eu lembrei-me do cheiro da bracelete de plástico nova.

Acho que hoje vou adormecer como se fosse outra vez esse lingrinhas ao teu colo, com medo dos leões.

Herdei o teu cabelo, dizem-me.

Amo-te.

Boa noite.

domingo, 26 de abril de 2009


"...or if your wish be to close me,
i and my life will shut very beautifully, suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending..."
*
e.e.cummings

domingo, 19 de abril de 2009


A noite passada sonhei com Moçambique. Quase, quase, quase, como tudo aconteceu. Andava descalço no meio da terra e o vento soprava com força de bebé pequeno pelos meus cabelos. Eu via a Sara ao longe, absorta no rio de crocodilos. Eu queria silêncio e um coração a explodir de fogo e de bênção e de amor. Eu existia sob a verdade simples daquele céu. Sabia dos sorrisos-luz das crianças e das mulheres caminhando pela margem dos caminhos. Ouvia dos homens os seus mistérios. Dos velhos as bibliotecas humanas, os olhos fundos de outros tempos e o conhecimento inteiro do mundo. Um só deles era toda a minha biblioteca, era mais que a minha biblioteca, era mais que qualquer biblioteca. Um só deles era vida e era passado e era o presente e até o que havia de vir. Era como ler um livro que não acabasse. Ou como lê-lo ano após ano e ser sempre diferente. Os animais vinham até mim como se eu fosse Noé. No sonho, eu podia falar com eles.

Vai, disse eu ao leão. E o leão obedeceu-me e desapareceu por entre as ervas altas.

Devagar, o mundo vinha rodear-me em Moçambique.

E depois houve silêncio, como se todos tivessem sido, por segundos, dissolvidos no pó da terra e espalhados pelo sopro do vento. O sol entrava dentro da terra, como se fosse a vida a acontecer depois de um homem e de uma mulher e um bebé milagroso. Os pássaros parados no tempo, envolvidos nos seus ramos de marasmo. Depois, quebrando o véu do silêncio, um cântico. Entrei dentro do edifício antigo. Era uma igreja enorme e simples, de paredes nuas. No centro, uma cruz, algumas flores. Numa das extremidades do interior da igreja, um grupo de africanos entoava uma música, Oh, dá-me mãos limpas, um coração puro, arranca a vaidade, ensina-me a amar, e soavam tambores suaves e as vozes construíam um edifício imaginado de vários andares. A luz caía melíflua lá dentro. E o divino descia, se é que precisava de descer, se é que não vivesse sempre em meu redor, se é que não fosse o passo seguro, o balanço das árvores ao vento, as mãos dadas dos amantes honestos, a corrente fresca dos rios.


Quando acordei, pensei no velho do livro do Hemingway, que sonhara com leões.


Eu, no meu sonho, era capaz de falar com eles.



*