domingo, 19 de abril de 2009


A noite passada sonhei com Moçambique. Quase, quase, quase, como tudo aconteceu. Andava descalço no meio da terra e o vento soprava com força de bebé pequeno pelos meus cabelos. Eu via a Sara ao longe, absorta no rio de crocodilos. Eu queria silêncio e um coração a explodir de fogo e de bênção e de amor. Eu existia sob a verdade simples daquele céu. Sabia dos sorrisos-luz das crianças e das mulheres caminhando pela margem dos caminhos. Ouvia dos homens os seus mistérios. Dos velhos as bibliotecas humanas, os olhos fundos de outros tempos e o conhecimento inteiro do mundo. Um só deles era toda a minha biblioteca, era mais que a minha biblioteca, era mais que qualquer biblioteca. Um só deles era vida e era passado e era o presente e até o que havia de vir. Era como ler um livro que não acabasse. Ou como lê-lo ano após ano e ser sempre diferente. Os animais vinham até mim como se eu fosse Noé. No sonho, eu podia falar com eles.

Vai, disse eu ao leão. E o leão obedeceu-me e desapareceu por entre as ervas altas.

Devagar, o mundo vinha rodear-me em Moçambique.

E depois houve silêncio, como se todos tivessem sido, por segundos, dissolvidos no pó da terra e espalhados pelo sopro do vento. O sol entrava dentro da terra, como se fosse a vida a acontecer depois de um homem e de uma mulher e um bebé milagroso. Os pássaros parados no tempo, envolvidos nos seus ramos de marasmo. Depois, quebrando o véu do silêncio, um cântico. Entrei dentro do edifício antigo. Era uma igreja enorme e simples, de paredes nuas. No centro, uma cruz, algumas flores. Numa das extremidades do interior da igreja, um grupo de africanos entoava uma música, Oh, dá-me mãos limpas, um coração puro, arranca a vaidade, ensina-me a amar, e soavam tambores suaves e as vozes construíam um edifício imaginado de vários andares. A luz caía melíflua lá dentro. E o divino descia, se é que precisava de descer, se é que não vivesse sempre em meu redor, se é que não fosse o passo seguro, o balanço das árvores ao vento, as mãos dadas dos amantes honestos, a corrente fresca dos rios.


Quando acordei, pensei no velho do livro do Hemingway, que sonhara com leões.


Eu, no meu sonho, era capaz de falar com eles.



*

1 comentário:

  1. Foi todo isso realmente um sonho?
    Sei que leões não falam, mas não poderia ser verdade? Mesmo numa realidade paralela?
    Fiquei absorvido à medida que ia lendo!

    Parabéns!
    Tens aqui um excelente blog...
    Encontrei-o ao acaso e já o gravei para não o perder de vista!

    Abraço grande
    =P

    ResponderEliminar