Escuta, partiste há muito tempo e parece que foi ontem. E no entanto, eu ia fazer quinze anos e daqui a uns meses já faço vinte e cinco. Sabes, antes de tu partires, as Torres Gémeas ainda não tinham caído. No dia em que partiste, a guerra do Kosovo ainda não tinha acabado e o Bush ainda não era presidente dos Estados Unidos. Eu ainda não tinha ido a Moçambique.
O mundo era diferente.
Mas descansa. Eu não te deixo ficar parado no tempo. Nem guardo rancor ao tempo. Nem à dor. Não é que eu não compreenda a dor: tenho-lhe o maior respeito; ensinou-me muito. Mas o tempo e a dor são duros como uma rocha – partir aquela pedra toda pode dar cabo de nós. Saber partir aquela pedra nos sítios certos é tão difícil, requer tanta dedicação, tanta bondade.
Terei eu esculpido a minha pedra da maneira que tu desejavas?
Sabes, alguns anos depois de tu partires, o avô também partiu e endureceu o meu trabalho. A pedra foi-se tornando cada vez mais difícil de esculpir. Eu ia partindo, partindo, partindo, e quando me apercebia de que o que estava a fazer podia ser irremediável e não sobrar porção que se aproveitasse, eu tinha que me sentar e pensar muito bem onde ia apontar dessa vez a picareta.
O avô era o homem que eu mais amava depois de ti.
Hoje, sentei-me num banco do metro à espera do comboio, mas quando ele chegou eu não entrei. Nem nesse, nem no seguinte, nem no outro, nem sequer no comboio depois desse. Fique ali sentado, enquanto as pessoas entravam e saíam. Podiam ter passado vinte comboios diferentes sem que eu me tivesse apercebido. Pensei em ti e noutras coisas também. A minha memória está sempre a activar-se com pequenas coisas. Por exemplo, enquanto estava sentado, senti um baque de calor que me fez pensar numa viagem que eu fiz há dois anos em busca do amor e lembrei-me do exacto perfume que eu usava nessa altura: o calor e o cheiro do perfume fizeram-me, por alguns segundo, atravessar uma pequena rua em direcção ao mar, como na viagem: até o ar insular abafado do fim da tarde ocupou a estação.
Talvez não te tenha dito ainda que, há poucos anos, contei uma coisa à mãe que ela não percebeu muito bem ao início. Esse foi outro momento de dor. Mas a mãe é tão bonita e tem cuidado tão bem de nós. Ela é como uma força maior que o braço que a produz, ou um vitral com a luz da tarde. (Ela é como uma fotografia de Deus.) Depois ela acabou por acertar tudo no coração, no amor – que é onde se alinha o que é importante. Nunca mais existiu vergonha. E depois veio a felicidade, apesar de toda a dor, de todos os erros. Como consequência, vieram também a liberdade e a coragem. Descobri que as duas caminham juntas.
Juro-te: nunca tentei esculpir tão bem a pedra como desde o dia em que contei à mãe. Às vezes estou mesmo cansado, mas é arrepiante ver o teu rosto surgir por entre a brutalidade da pedra: ver o rosto do avô: ver a forma do que amei, do que fui a amar, do que sou a amar.
No outro dia, encontrei uma fotografia tua por acaso. Estava dentro de um dos meus livros. O “Centauro”, do John Updike. Eu era pequeno e estava ao teu colo. Tu ainda tinhas bigode e eras muito jovem. Nesse dia, tinhas-me comprado um relógio no jardim zoológico. Eu lembrei-me do cheiro da bracelete de plástico nova.
Acho que hoje vou adormecer como se fosse outra vez esse lingrinhas ao teu colo, com medo dos leões.
Herdei o teu cabelo, dizem-me.
Amo-te.
Boa noite.
segunda-feira, 27 de abril de 2009
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Todos os dias são dias da mae. E como é bom sentirmos de novo o colo de quem nos protege, sem que nos tenhamos de tornar adultos e cuidar de nos...
ResponderEliminarabraço-te assim _________ forte
Obrigado, Daniel! : )
ResponderEliminarOutro, sem longe nem distância.
Se abraços há que são como palavras, palavras há também que são como abraços:
ResponderEliminarAbraço(-te)
E é tudo...
Bonita homenagem... Arrepiante!
ResponderEliminarabraço
Existem pessoais intemporais...
ResponderEliminarEstão connosco onde quer que estejamos.
Sentimo-las do nosso lado ainda que não as possamos ver...
E tenho a certeza, tu consegues sentir mais que ninguém!
Obrigado por este momento!
Abraço grande
Sem palavras.
ResponderEliminarfiquei com a lagrima no canto do olho , lindissima homenagem a todos..
Abrço.