A chuva caía fluorescente. Azul-escuro fluorescente. A Senhora veio sentar-se ao meu lado, na paragem. Conheci-a já, na companhia que encontrei no seu rosto, nos olhos, no fundo dos olhos. A pele negra, fundamente negra, vestida de azul. Azul-escuro: casaco e saia. Cabelo grisalho. Traços velhos através da cara que invocavam bondade e abnegação anos a fio. Sentou-se e colocou as mãos sobre os joelhos, como se os esfregasse, angustiada com o que pudesse sair-lhe da boca. Filho, é possível que estejas a perder a Voz. Era verdade o que ela dizia. Era possível, sim; eu já tinha pensado nisso. Nunca tínhamos falado e eu sabia sobre aquilo, sobre o que ela me estava a dizer. A Voz a desfalecer. Perder a Voz. Perceber a Voz tornando-se num murmúrio, um eco frágil, um som que a memória não guarda. Ela continuou, Eu sei que os tempos não têm sido fáceis para a guardares: a Voz pode ser enxotada para fora das divisões do nosso coração por outras coisas. É irónico e parece que é uma coisa que não pertence a este mundo, o mundo em que eu e tu acreditamos, mas às vezes é a felicidade que afasta a nossa Voz do centro de nós. Acontece, às vezes. Não, não te posso pedir que abdiques de uma em favor da outra. Não seria justo para ti. É propósito do homem, logo após nascer, ser feliz. E tu deves seguir esse caminho. Aliás, tu estás nesse bom caminho. O que te peço é que estejas atento, que sejas testemunha. Vive a tua alegria como um tesouro, uma pessoa amada. Mas não te deixes esquecer. Não amoleças. Permanece atento ao mundo à tua volta, sai do teu quarto. Tu andas a precisar de chorar. Não é preciso magoares-te, sim? Tu e eu sabemos que somos capazes de chorar mesmo quando estamos completamente felizes. Choramos porque queremos salvar o mundo e a imagem do mundo quebrado, perdido, vai ao mais fundo de nós. Tu tens sentimentos tão bonitos. Emocionas-te com o amor, com a miséria, com a dor. E eu, nesse exacto momento, comecei mesmo a chorar, como se há muito estivesse a esperá-la, à Senhora. Só para desabafar. Ela tomou as minhas mãos dentro das suas. Eram enormes: as minhas mãos, dentro das dela, pareciam as de um menino. Ela olhou-me. Os olhos dela eram um lago sereno de lágrimas. Não pronunciou mais palavra nenhuma. Mas eu entendi a mensagem. Era para eu não perder a Voz. Era para continuar a sentir, a morrer de sentir, a comover, a correr e a salvar, a ser salvo, a perder-me, a cuidar. Para que a voz não fosse levada definitivamente de dentro de mim. Ela levantou-se e caminhou sob a chuva. A cidade estava deserta. Quando já estava um bocadinho longe de mim, virou-se e gritou-me, da distância, O mundo precisa da tua Voz.
Eu sei, respondi para mim. Eu sei.